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Corregedoria do TJRS suspende norma sobre “tokenização” de imóveis e determina que títulos lastreados em tokens não sejam registrados

Decisão retira efeitos do Provimento nº 38/2021-CGJ e reitera que direitos sobre imóveis só podem circular no sistema registral oficial, sob supervisão do Poder Judiciário. Despacho também incorpora diretrizes técnicas propostas pelo ONR para impedir que plataformas privadas ofereçam “frações” digitais de propriedade imobiliária fora do SERP.

A Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul suspendeu os efeitos do Provimento nº 38/2021-CGJ e determinou que os Registros de Imóveis do Estado não registrem títulos que associem a propriedade imobiliária a “tokens” ou outros mecanismos privados de blockchain. A decisão, assinada em 24 de outubro de 2025, também orienta que os oficiais de registro comuniquem imediatamente à Corregedoria qualquer oferta, publicidade ou tentativa de negócio que prometa “frações” de imóveis por meio de tokens digitais como se isso tivesse valor jurídico de direito real.

O despacho reconhece que, desde 2021, proliferaram no mercado iniciativas privadas que anunciam a possibilidade de “comprar um pedaço de um imóvel” por meio de tokens ancorados em blockchain, como se esses ativos digitais conferissem propriedade imobiliária, direito de preferência, participação patrimonial ou outra forma de domínio. Esse tipo de discurso comercial passou a usar o precedente gaúcho de 2021 como suposto aval para estruturar negócios imobiliários paralelos. Com a decisão, a Corregedoria do TJRS torna clara aposição institucional do Judiciário estadual, de que tais operações não podem ingressar no Registro de Imóveis e não produzem efeitos perante terceiros, porque o controle da titularidade imobiliária permanece exclusivamente no sistema registral oficial.

O Provimento nº 38/2021-CGJ, editado em 2021, havia sido uma resposta da Corregedoria-Geral a uma consulta apresentada pela Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul (ANOREG-RS) e por entidades extrajudiciais locais sobre a possibilidade de lavrar escritura de permuta na qual um imóvel fosse trocado por “tokens/criptoativos”. 

Naquele momento, a Corregedoria criou um conjunto de exigências para permitir o ato notarial e registral, onde as partes deveriam declarar o valor econômico dos tokens; assumir por escrito que aqueles ativos não representavam, direta ou indiretamente, direitos sobre o próprio imóvel permutado; e deixar registrada essa informação na matrícula, de modo a evitar que um token fosse apresentado como “fatia” de propriedade imobiliária. Todos os atos também deveriam ser comunicados ao COAF, em razão do risco de lavagem de dinheiro.

Ou seja, ainda em 2021, a Corregedoria do RS não reconhecia o token como forma de transmitir domínio imobiliário, mas apenas admitia que alguém pudesse receber um ativo digital como contraprestação numa permuta, desde que esse ativo fosse tratado como bem econômico — e não como título de propriedade de imóvel. 

O despacho de outubro de 2025 altera o patamar dessa discussão. A Corregedoria agora conclui que a permanência do Provimento nº 38/2021-CGJ cria um risco concreto de leitura equivocada e de desvio regulatório. Segundo a decisão, “manter aquela disciplina — editada antes da Lei nº 14.382/2022 — poderia sustentar a ideia de uma plataforma paralela de controle da titularidade imobiliária, à margem do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP)”.

A Lei nº 14.382/2022 instituiu o SERP como a via nacional para recepção, intercâmbio e circulação eletrônica de títulos e documentos registrais. O despacho da Corregedoria do TJRS adota expressamente a interpretação de que, após essa Lei, não há espaço para estruturas privadas que pretendam funcionar como “Cartórios paralelos” em blockchain ou para sistemas que anunciem “controle de propriedade” fora do ambiente oficial. 

Desta forma, a Corregedoria afirma que o registro e a publicidade de direitos reais sobre imóveis são atribuições exclusivas do Registro de Imóveis, cuja atividade é fiscalizada e normatizada pelo Poder Judiciário. A qualificação registral — ou seja, o exame jurídico que decide se um título pode ingressar na matrícula e produzir efeitos contra terceiros — é competência exclusiva do registrador imobiliário.

A decisão também incorpora, de forma direta, a proposta encaminhada ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pelo Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR), pelo Registro de Imóveis do Brasil (RIB) e pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB). Essa proposta, segundo o despacho, foi levada ao CNJ no Pedido de Providências nº 0006613-89.2025.2.00.0000 e tem como eixo central a definição de que qualquer uso de blockchain, tokenização ou tecnologia equivalente no âmbito da atividade registral imobiliária precisa ocorrer dentro do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), operado e normalizado pelo ONR, e submetido à regulação da Corregedoria Nacional de Justiça.

A decisão da CGJ/RS não está interditando o uso da tecnologia digital, nem excluindo a blockchain como eventual camada futura do sistema. O que o despacho faz é delimitar a competência institucional, de que nenhuma plataforma privada pode se apresentar como ambiente legítimo de constituição, transferência ou fracionamento de direitos reais imobiliários à margem do Registro de Imóveis. Se, em algum momento, houver uma camada tecnológica baseada em blockchain para registrar atos ou dar publicidade a direitos reais, ela terá de nascer dentro do SREI/SERP, sob responsabilidade do ONR, com parâmetros técnicos definidos por Instruções Técnicas de Normalização (ITNs) editadas pelo próprio ONR e supervisionadas pelo CNJ.

A partir dessa leitura, a Corregedoria gaúcha toma três medidas de efeito imediato. Primeiro, suspende formalmente os efeitos do Provimento nº 38/2021-CGJ. Segundo, determina que os registradores de imóveis gaúchos qualifiquem negativamente — portanto, recusem o registro — todos os títulos ou documentos que tentem vincular direitos imobiliários a tokens, “smart contracts”, redes privadas de blockchain ou modelos semelhantes que criem “controles privados de titularidade” fora do SERP. Terceiro, orienta que, sempre que houver publicidade ou oferta sugerindo ao público que um token equivale à propriedade (por exemplo, anúncios que prometem “frações digitais de um imóvel já escriturado”), o oficial comunique o fato à Corregedoria para providências junto às autoridades competentes, incluindo fiscalização antilavagem, órgãos tributários, Ministério Público, órgãos de defesa do consumidor e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.

Esse último ponto mostra uma mudança de escala. A discussão deixa de ser apenas técnica e passa a ser também de tutela coletiva. A Corregedoria associa a tentativa de “tokenizar” imóveis fora do sistema oficial a potenciais práticas de fraude contra o consumidor, sonegação fiscal, ocultação patrimonial, violação de regras de publicidade registral e mau uso de dados pessoais. Ao transformar a recusa em ato obrigatório e a comunicação em dever institucional, a decisão coloca os Cartórios na linha de frente da prevenção a estruturas que se vendem como “investimento imobiliário tokenizado” sem passar pelo regime de controle, publicidade e responsabilidade próprio do Registro de Imóveis.

Para o ONR, a medida adotada pelo TJ/RS ajuda a dar previsibilidade jurídica num ambiente em que startups e estruturas financeiras passaram a anunciar “modelos alternativos” de titularidade imobiliária. 

Para o presidente do Operador, Juan Pablo Correa Gossweiler, a decisão da Corregedoria-Geral do TJ/RS consolida um princípio que é basilar para a segurança do negócio imobiliário no país, de que a propriedade não pode ser privatizada em redes fechadas. Segundo ele, “a titularidade de um imóvel no Brasil continua sendo um dado público, controlado pelo Registro de Imóveis e fiscalizado pelo Poder Judiciário. Nenhuma plataforma privada pode vender a ideia de que um token funciona como escritura ou como ‘fatia digital’ de um apartamento. A decisão do TJ/RS protege o cidadão, protege o mercado e preserva a coerência do sistema nacional ao afirmar que qualquer evolução tecnológica terá de acontecer dentro do SREI e do SERP, com supervisão pública e rastreabilidade completa”.

Gossweiler também reforça que a discussão sobre blockchain e registro imobiliário permanece aberta no plano nacional, mas em outro patamar. “O caminho está claro. Nós levamos ao Conselho Nacional de Justiça uma proposta que permite evoluir tecnologicamente sem romper a lógica do registro público. Isso significa dizer que blockchain pode vir a ser usada, mas não como um mercado paralelo de propriedade. Ela só terá validade se estiver integrada ao ecossistema oficial, sob as regras técnicas do ONR e da Corregedoria Nacional, e nunca como um atalho que tenta substituir a matrícula imobiliária”.

Do ponto de vista prático, para quem atua no mercado, a partir do despacho de 24 de outubro de 2025, títulos que procurem formalizar a transferência, a cessão de frações ideais ou qualquer promessa de domínio imobiliário por meio de tokens lastreados em blockchain privada devem ser reprovados na qualificação registral no Rio Grande do Sul. Essa orientação vale também para tentativas de arquivar, em Cartório, instrumentos contratuais que descrevam um token como se fosse uma “cota” de imóvel ou um “registro digital alternativo”, e vale inclusive para atos lavrados em Tabelionatos de notas. O oficial é orientado a não admitir esses títulos e a notificar o fato, o que pode desencadear atuação de múltiplos órgãos públicos.

A decisão da CGJ/RS, que já foi formalmente comunicada aos tabeliães de Notas e aos registradores de Imóveis do Estado,  determina que o sistema informatizado do Tribunal de Justiça traga a informação de que o Provimento nº 38/2021-CGJ está suspenso. Isso significa que, a partir de agora, citar a norma de 2021 como base para operações de “tokenização imobiliária” no Rio Grande do Sul é juridicamente incorreto. O ato vigente é o despacho de 24 de outubro de 2025, que afasta o modelo anterior e estabelece a vinculação direta ao SERP, à Lei nº 14.382/2022 e às diretrizes técnicas do ONR.

Confira o despacho da Corregedoria-Geral da Justiça do Rio Grande do Sul na íntegra.

Por Luana Lopes

Assessoria de Comunicação do ONR 

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